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sábado, 22 de outubro de 2011

Transe e Possessão: um ponto de vista técnico.



Independente de acreditarmos em todos os deuses e demônios, vamos abordar o tema como se espera da ciência, deixando para outros profissionais de outras áreas a difícil tarefa de lidar com o sobrenatural.

Em nosso meio a maioria das pessoas que se apresenta em transe não é, decididamente, portadora de nenhuma patologia psiquiátrica. Trata-se da influência de elementos sócio-culturais na representação da realidade, tratados mais adiante com o nome de Psiquiatria Transcultural.

A influência da cultura nos sentimentos, nos afetos e no comportamento não deve ser, por si só, tomada como doença mental. Se fosse assim, um cordão de carnaval, aos olhos de outra cultura, por exemplo, poderia ser tomado como um batalhão de dementes. Interessa à psicopatologia aqueles casos que comportam decididamente um diagnóstico médico e psíquico.

Psiquiatria Transcultural

Ao mesmo tempo em que se corre um risco patológico com a religião, a cultura brasileira extrai de alguns ritos e seitas extraordinários recursos para um certo equilíbrio biopsicossocial, principalmente das chamadas “camadas populares”, segundo Fernando Portela Câmara.

As seitas espiritistas, ou seja, aquelas que giram em tornos de entidades espirituais vindas do mundo dos mortos, entidades malignas e do bem, como por exemplo o espiritismo Kardecista popularmente aculturado no Brasil, também os cultos afro-brasileiros (candomblé, quimbanda, catimbó, xangô, batuque), as crenças de pajelança, paricá dos índios nativos, formam todas o elemento principal do sincretismo brasileiro que atende aqueles que buscam outras formas de ajuda, em especial a ajuda espiritual.

No ambiente brasileiro comum, cotidiano, místico e aflito ao mesmo tempo, muitas vezes a religiosidade e psicopatologia se misturam, tornando difícil estabelecer os limites entre uma e outra, onde termina a doença e começa a religiosidade, e vice-versa (Walmor Piccinini).

Em depoimento colhido para elaboração da História da Psiquiatria Forense no Brasil, Piccinini entrevista o professor Rubim de Pinho. Este, respondendo sobre psiquiatria transcultural, refere haver muitos comportamentos, muitas reações, muitas expressões da personalidade formados à partir de certos condicionamentos culturais, e o psiquiatra mal preparado pode confundir esses comportamentos com verdadeiros distúrbios mentais.

Pinho lembra bem que a maior habilidade de alguns desses líderes religiosos, que às vezes erram, como erram também os médicos, é saber diferenciar os casos que comportam um tratamento médico, aplicado pela medicina formal, dos casos que são sensíveis aos tratamentos informais, como por exemplo, espirituais.

Talvez seja essa questão, eminentemente cultual, que proporciona a maior diferença entre o tratamento da doença e o tratamento do doente. E, de fato, algumas pessoas podem ser beneficiadas mais com os tratamentos populares e religiosos do que os tratamentos médicos.

Algumas vezes a questão cultural, ou seja, a representação cultural da realidade aproxima mais as pessoas de suas crenças que da ciência. A psiquiatria transcultural procura por quadros mentais específicos de determinada cultura. É o caso, por exemplo, do conceito de Quebranto, como uma influência maldosa e capaz de tornar as pessoas vitimadas por ele mais vulneráveis às doenças. Esse é o caso típico de uma representação da realidade que faz parte do cardápio cultual brasileiro.

Tem igual teor cultural outros estados doentios que acometiam escravos, índios e mesmo imigrantes em outras épocas. O Banzo, por exemplo, acometia os escravos negros trazidos da África e se caracterizava, inicialmente, por acentuada tristeza, seguida por definhamento, podendo chegar à morte por inanição e apatia extrema.

Outro exemplo de Psiquiatria Transcultural é o estudo de Rubim de Pinho, citado por Piccinini, mostrando a correspondência do Banzo de nossos antigos escravos, com aquilo que se chamava Síndrome de Campo de Concentração, observada por ocasião da II Guerra Mundial. Havia um estado depressivo ao qual se superpunha toda uma síndrome de carência alimentar, juntando ainda à depressão uma anorexia decorrente da falta de proteínas.

Rubim de Pinho cita ainda a questão do Mau Olhado. Trata-se, provavelmente, de uma versão nacional daquilo que foi o Magnetismo Animal na Europa. Era uma espécie de influência magnética do olhar de determinadas pessoas, conduzindo ao comprometimento da saúde de outras. Vale ainda um outro registro de Rubim de Pinho, de interesse da Psiquiatria Transcultural, ocorrido por ocasião da I Guerra Mundial (1914-1919) com o nome de Diabo no Corpo. Tratava-se de uma condição de agitação de determinadas pessoas, sobretudo do sexo feminino, que eram levadas semanalmente à Igreja da Piedade para serem exorcizadas pelos frades capuchinhos.

Os casos de Diabo no Corpo eram o mesmo que as famigeradas epidemias de possessão das bruxas, da possessão demoníaca que a Europa assistiu durante a Idade Média. E até a presente data, dependendo da cultura da comunidade em questão, continuam existindo os quadros de possessão, de influência maligna, de transe, etc.

Embora o diagnóstico que a psiquiatria seja obrigada a dar para todos esses quadros onde se necessitam de exorcismos seja de Transtorno Histérico (ou Histriônico), eles podem acometer pessoas com quaisquer outros transtornos mentais, incluindo as psicoses. Além disso, conforme vimos em Psiquiatria Transcultural, tais rompantes de possessões podem ainda acometer pessoas psiquicamente normais e momentaneamente fragilizadas emocionalmente.

A sociedade costuma ter momentos históricos e circunstâncias que comportam diferentes comportamentos, atitudes e desempenho de seus membros. Autoflagelações, jejuns prolongados, danças que se prolongam até a exaustão, enfim, a sociedade costuma estimular determinados modelos de comportamento e certas sugestões das massas. Por isso, é por demais desejável que o psiquiatra tenha sensibilidade suficiente para distinguir comportamentos e reações impregnados de agravantes e determinantes culturais das doenças mentais francas.

Essa recomendação significa que o psiquiatra deve estar atento para diferenciar o que é interferência da cultura no comportamento e na atitude da pessoa e o que é manifestação de um processo doentio. Por conta disso, Rubim de Pinho chega a desejar que os psiquiatras brasileiros, e baianos em particular, tivessem a capacidade que têm as mães-de-santo mais hábeis e que têm certos líderes espíritas para diferenciar os fenômenos que eles consideram religiosos e nós consideramos culturais, mas que sem dúvida são diferentes daquilo que está descrito na psiquiatria tradicional.

Para esses casos de natureza exuberante pode-se dar o nome de Fenômenos Protoplásticos. Quando há alterações da normalidade (não-normal, estatisticamente), porém, não se pode constatar alguma doença franca, pode-se falar em Fenômeno Protoplástico, ou seja, uma alteração não tão mórbida como ocorreria no processo francamente patológico.

Mas a cultura que estimula uma religiosidade excessiva não costuma favorecer com exclusividade o desenvolvimento de doenças e transtornos emocionais. Se, de fato, as questões culturais e religiosas podem precipitar quadros patológicos, por outro lado, estudiosos do comportamento da modernidade afirmam que a falta de fé, uma das características do mundo atual, estaria também contribuindo para a ocorrência crescente de outros quadros patológicos. Estes, por sua vez, seriam ligados a uma cultura exageradamente individualista (Sloan, 1996; Schumaker, 2001).

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