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quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Por dentro do negócio global de partes do corpo...




O negócio de partes do corpo da companhia alemã Tutogen é tão secreto quanto lucrativo. Ela extrai ossos de corpos na Ucrânia para fabricar produtos médicos para um mercado global que movimenta bilhões e está centrado nos Estados Unidos.

O engenheiro aposentado Anatoly Korzhak morreu em Kiev em 5 de agosto de 2004. Seu corpo foi recolhido às 2h e levado para o instituto de medicina legal da capital ucraniana. Na mesma noite, a filha de Korzhak, Lena Krat, recebeu um telefonema no qual pediram para que ela fosse para o instituto logo de manhã, onde receberia mais informações.

Foi a primeira vez que Krat recebeu a notícia da morte de um parente próximo. "Eu fiquei tão triste que não conseguia pensar com clareza", lembra-se. Quando ela chegou ao instituto de manhã, um homem disse alguma coisa para ela sobre transplantes de pele. Tratava-se de um funcionário de uma companhia ucraniana que trabalha lado a lado com os especialistas em medicina legal. Ela disse ao homem: "Deixe-me em paz. Eu não sei do que você está falando e não quero ouvi-lo."

Mas o funcionário foi persistente e eventualmente deu a ela um formulário para assinar. Ele disse que se ela consentisse com a remoção da pele, estaria ajudando vítimas pediátricas de queimaduras, que precisavam de transplante. Krat assinou o formulário. "Foi como se eu tivesse sido hipnotizada", disse ela.

Mas agora Krat, mãe de duas filhas pequenas, ficou sabendo através da "Spiegel" que a companhia ucraniana em questão enviava as partes de corpos para a companhia alemã Tutogen Medical GmbH, que por sua vez fornece aparentemente um grande número de partes de corpos para o mercado norte-americano de tecidos.

Além de faixas de pele, tendões, ossos e cartilagem são removidos dos corpos. "Isso me chocou", disse Krat. "Se eu soubesse que tudo isso seria retirado, eu jamais teria dado meu consentimento."

O incidente na capital ucraniana faz parte da rotina diária secreta de um ramo pouco conhecido, mas altamente lucrativo do setor médico, no qual companhias usam corpos para produzir suprimentos médicos. Ao fazer isso, eles reutilizam quase tudo que o corpo humano tem a oferecer: ossos, cartilagem, tendões, fáscia muscular, pele, córneas, saco pericárdico e válvulas do coração. No jargão da profissão, tudo isso é chamado de "tecido".

Ossos e tendões, as partes que mais interessam à Tutogen, são submetidos a um processamento complexo. A companhia retira a gordura e limpa os ossos, corta, serra ou os tritura nos tamanhos desejados, depois esteriliza, embala e vende o produto final para mais de 40 países em todo o mundo. Com uma prescrição médica é até mesmo possível pedir os produtos da Tutogen através de farmácias online.

O mercado para os tecidos ainda é pequeno na Alemanha. No que diz respeito aos ossos, por exemplo, os especialistas estimam que cerca de apenas 30 mil transplantes por ano são feitos em hospitais de todo o país, principalmente para reconstrução óssea durante cirurgias de quadril e coluna vertebral.

Nos Estados Unidos, a história é completamente diferente. De acordo com a Academia Americana de Cirurgiões Ortopédicos, mais de um milhão de partes de ossos são usadas em transplantes todos os anos. Em nenhum outro país é possível ganhar tanto dinheiro com partes de corpos. Se um corpo for separado em partes avulsas, depois processado e vendido, o procedimento total poderia chegar a US$ 250 mil (cerca de R$ 470 mil). Por apenas um corpo! O setor de tecidos dos EUA gera um lucro total de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 1,88 bi) por ano, diz a jornalista Martina Keller, coautora deste artigo e autora do livro "Cannibalized: The Human Corpse as a Resource" [algo como "Canibalizado: O Corpo Humano Como Matéria-Prima"], publicado na Alemanha.

Questões éticas e legais
Isso levanta questões sobre a legalidade do processo de obter a matéria-prima. E será que os produtos ósseos feitos a partir de corpos são medicamente necessários? De acordo com Klaus-Peter Günther, presidente da Sociedade Alemã de Ortopedia e Cirurgia Ortopédica, eles normalmente "não são a primeira escolha" nas cirurgias. "Para nós, a regra de ouro ainda é o tecido retirado diretamente do paciente em questão."

As demais alternativas só são uma opção quando o material do corpo do paciente é insuficiente, disse Günther. Essas alternativas incluem ossos de animais e substitutos artificiais feitos de material cerâmico, por exemplo - ou ossos de doadores humanos.

Muitos hospitais coletam e reutilizam fragmentos de ossos removidos de pacientes que receberam quadris artificiais. "Por esse motivo", diz Günther, "não tivemos de recorrer a doadores mortos até agora."

Nos Estados Unidos, os médicos têm menos escrúpulos em relação a usar partes de corpos de mortos do que seus colegas alemães - em áreas como cirurgia de coluna, lesões esportivas e cirurgia cosmética. Por exemplo, os médicos usam partículas pulverizadas de pele para aumentar os lábios e atenuar rugas.

Será que os corpos devem ser cortados para tornar os procedimentos cosméticos possíveis? Ingrid Schneider é decididamente contra essa prática. Durante os últimos 15 anos, a cientista política de Hamburgo, ex-integrante da Comissão Investigativa sobre Lei e Ética na Medicina Moderna do parlamento alemão, esteve envolvida no assunto da reciclagem de material corporal. Schneider argumenta que o corpo não é uma fonte de materiais que podem ser vendidos à vontade. Por causa dessas preocupações, não surpreende que muitas pessoas sejam profundamente contra permitir que o corpo de um familiar seja reusado, mesmo para fins médicos.

Mesmo que seja pouco realista esperar que toda a comercialização de partes de corpos seja proibida na medicina moderna, diz Schneider, é importante estabelecer limites. Por esse motivo, ela insiste que os tecidos humanos devem ser usados com restrições - ou seja, apenas quando seu uso é medicamente necessário e evidentemente superior a outras formas de tratamento.

A convicção de que o corpo é muito mais do que um objeto também influenciou as políticas da Organização Mundial de Saúde (OMS), do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, instituição da UE que representa os líderes e ministros do bloco de 27 países. Todas essas instituições condenam a prática do comércio de partes do corpo humano para obter lucro.

Na Alemanha, a lei de transplantes de órgão regulamenta a remoção de tecidos. Apenas aqueles que consentiram com a coleta de órgãos e tecidos são considerados doadores. Se uma pessoa morre e não é uma doadora, seus parentes próximos podem consentir com a doação. O parágrafo 17 da lei de transplantes define explicitamente: "É proibido comercializar órgãos ou tecidos para uso em tratamentos médicos e outros fins." Médicos que removem tecidos só podem receber uma compensação correspondente ao seu trabalho. A lei determina sentenças de prisão de até cinco anos por violação à proibição de comércio.

fonte: Der Spiegel (Jornal alemão)

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