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quinta-feira, 27 de maio de 2010

Possível cura para hepatite C

Foi identificada uma molécula capaz de inibir a replicação do vírus.

A hepatite tipo C é grave. Entre 200 milhões e 300 milhões de pessoas sofrem dessa doença, que, aos poucos, destrói o fígado. Ao contrário das hepatites A e B, para as quais já existem vacinas, o único tratamento conhecido para a hepatite tipo C tem efeitos colaterais sérios e não é eficiente em quase 50% dos casos. Por esse motivo, a descoberta de uma nova molécula capaz de bloquear a ação do vírus é uma ótima notícia. E a forma como essa molécula foi descoberta é uma lição de humildade para a ciência do século 21.

Até meados do século 20, a grande maioria dos medicamentos era colocada em uso sem que se soubesse seu mecanismo de ação. A aspirina é um exemplo. A molécula foi sintetizada em 1853, seus efeitos antitérmicos foram descobertos em 1897 e sua comercialização, iniciada em 1899. A patente expirou em 1917 e, desde então, o ácido acetilsalicílico vem sendo vendido por centenas de companhias. Mas levou quase um século para que o mecanismo por meio do qual a aspirina baixa a febre, cura dores de cabeça e ajuda a evitar problemas cardiovasculares fosse elucidado. Isso só ocorreu entre 1960 e 1980.

Nas últimas décadas, a lógica da descoberta de novos medicamentos se inverteu. Grande parte foi desenvolvida a partir do conhecimento gerado por médicos e biólogos. Primeiro, os cientistas descobrem as bases moleculares da doença e os novos medicamentos são desenvolvidos a partir desse conhecimento. É o caso das drogas contra o HIV. O vírus foi descoberto, seu genoma, sequenciado, e, a partir da identificação de duas enzimas essenciais para seu funcionamento, as companhias farmacêuticas desenvolveram moléculas que, ao inibirem essas enzimas, bloqueiam a ação do vírus.

Em 1989, quando o vírus da hepatite tipo C foi descoberto, tudo levava a crer que rapidamente seríamos capazes de compreender como o vírus funciona, o que levaria ao desenvolvimento de medicamento eficientes. Mas isso não ocorreu. Hoje sabemos muito sobre o funcionamento de diversas enzimas do vírus, mas até agora não havia sido possível desenvolver drogas capazes de bloquear sua replicação.

Nesse novo experimento, os cientistas retomaram o método antigo. Primeiro, desenvolveram uma linhagem de células nas quais o vírus é capaz de se multiplicar. Após cultivaram essas células em milhares de minúsculos tubos de ensaio, em cada tubo foi adicionado um dos milhares de compostos químicos existentes no laboratório. Se o composto diminuía a velocidade com que o vírus replicava, eles investigavam se o composto agia sobre as enzimas mais conhecidas do vírus.

Agora vem o truque. Caso o composto agisse sobre enzimas conhecidas, ele era desprezado. Após testar 1 milhão de compostos distintos, foi identificada uma molécula, denominada BMS-858, capaz de inibir a replicação do vírus por um mecanismo novo e desconhecido. Ao tentar modificar essa molécula para aumentar sua eficiência, foi descoberto que um dímero da molécula era ainda mais eficiente. Esse dímero, chamado de BMS-790052, é capaz de inibir a replicação do vírus em concentrações muito baixas. Foi descoberto que essa molécula atua ao se ligar a uma proteína do vírus chamada NS5A, cuja função continua a ser um mistério.

Apesar de os cientistas desconhecerem o mecanismo de ação desse composto, ele foi ministrado a um pequeno número de pacientes. Uma única dose de 100 miligramas reduz em 2 mil vezes a concentração do vírus e esse efeito dura por até 12 dias. Com base nesses resultados, foram iniciados testes clínicos. Se o BMS-790052 se comportar nos testes com milhares de pacientes como se comportou nos testes iniciais, em alguns anos teremos um composto que talvez seja capaz de curar a hepatite C.

A maneira como este composto foi descoberto, ignorando deliberadamente o que se sabe sobre o vírus, é uma lição de humildade para os cientistas. Apesar de todo o progresso da biologia molecular, mesmo quando analisamos organismos simples como o vírus da hepatite C, somos incapazes de prever seus pontos vulneráveis. Isso demonstra que, mesmo hoje, quando cientistas dizem ser capazes de criar vida no laboratório, métodos clássicos de identificação de novos medicamentos ainda têm seu lugar no arsenal das farmacêuticas.

fonte: Fernando Reinach, do Estadão.

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